Lembro-me
exatamente da risada exagerada de meu pai na sala de estar, naquele começo de
julho. O som da televisão misturava-se com a euforia que denotavam os fogos,
explodindo no céu que terminava de se pôr. Anos mais tarde, descobriria: existe
coisa mais bonita que um show de fogos de artifício? O colorido preenchendo e recolorindo
o tom azul de monotonia. Observava-os com olhos de criança curiosa. Eu, que
sempre fora tão medrosa em relação a tudo que demonstrasse qualquer mudança quanto
ao que me era comum, pela primeira vez, os achava belos. Um palco azul claro,
que dava espaço finalmente às belas bailarinas e suas saias coloridas. Voltando
ao ponto, a vida costumava ser uma verdadeira dança com direito a cabrioles,
echappés e jetés. Era 2010, e eu era só uma moça com nuvens na cabeça e a
cabeça nas nuvens.
Aquele
dia 2 foi uma semifinal, Holanda e Brasil. É claro. Por isso os fogos. Por isso
os comentários e risadas exageradas. De fato, meu pai nunca gostara de futebol.
Talvez a reunião da família e a saída ao meio-dia do trabalho fossem
consideradas bons motivos para deitar-se no sofá desleixadamente e deixar
escapar piadas sobre o jogo desencorajante. Minha mãe agarrava as pernas em
sinal de um misto de aflição e esperança. Era notável a maneira como, para ela,
tudo assumia uma intensidade maior. Às vezes, com a caneta entre os dentes, nas
horas últimas da noite, convoco-me a pensar a respeito da razão de tanta
sensibilidade em minha cabeça. De onde teria vindo, exatamente, o motivo da
poesia que me torna, hoje, dependente? Das pequenas coisas, imagino. A unha
roída, o cabelo preso despretensiosamente em um coque no topo da cabeça, os
gritos abafados pelo “quase” ...
A
estesia acumulada, a capacidade de sentir todas as ações com direito a
devastação inteira de meu ser, concluo: é resultado conjunto da maneira como me
deixei afetar pelas reações daqueles que me cercam. Talvez sempre tenha havido essa
tendência de deixar-me consumir. Tudo bem, de qualquer forma. Já virou a
mentira mais banal a de que agradeço à emoção, por ter me dado como presente o
dom de criar versos. Admito que, imaginar como seria a vida sem estrofes
rimadas, causa certa angústia e até mesmo um pouco de náusea. Nunca gostara de
fazer cálculos. A ideia de desperdiçar uma vida com a certeza, com o
definitivo, nunca conseguira seduzir-me. Falta de costume, possivelmente. De
qualquer forma, sempre alimentei a superioridade da arte. Ultimamente,
entretanto, tenho me perdido em contas. Quanto tempo passou desde que me
deixou? Poesias malfeitas, umas dez. As horas que chorei, pelo menos cinco. Mas
as horas que amei, querido, isso talvez nunca consiga deixar registrado em
lugar algum.
Agarro
com as mãos meus cachos pesados e castanhos. Sinto falta da abastança e logo me
lembro que estão mais curtos. Resultado de um ato de impulsividade em uma
daquelas madrugadas tão dramáticas quanto só o primeiro monólogo declamado por
Tespis, em plena Dionisíaca, na Grécia Antiga. Saudades do cabelo pinicando os
ombros. Na semana que se passara, esse nobre sentimento não era novidade
alguma. A cabeça doía devido à fronte enrijecida. Sinônimo de pensamento a mil,
eu diria. O papel em branco não seria de utilidade alguma, então optei por
abandonar a escrivaninha velha de madeira e servir-me de mais uma xícara de
café amargo.
Aceitar
que seria mais uma noite martelando qual exatamente foi o clímax que desandou
nosso romance foi tarefa fácil. Aliás, não diria romance. Muito mais ligeiro do
que isso: um mero conto. Afinal, tudo não passara de uma obra ansiada
arduamente, breve e repentina. A chuva causava um barulho incômodo. A
temperatura marcada no termômetro não era, de fato, baixa. O verdadeiro frio
era interior. Logo eu, você sabia, que não recebia o frio com tanta alegria
quanto o sertão que padecia sob o calor, sofria com a nevasca que sua ida havia
deixado. Doía, fazia ranger os dentes, sua partida sem a deixa de uma promessa
de continuidade, de próximo capítulo. Ponto final. A gelidez tornava-me imóvel
e petrificada. Lembra-se da nossa conversa sobre como demorava a chegada da
seca nessa Brasília? Chegou, meu bem. Tão rápido quanto sua deixa.
Sempre
me dissera que eu era ingênua. Eu acreditava, jogava a cabeça para trás e ria.
Elogio é ser chamada de criança nesse mundo tão envelhecido, ora. Contei os
milésimos para o devido momento em que meus olhos encontrariam novamente os
seus. Meu corpo tremeu e a respiração levou alguns instantes a mais a fim de
normalizar-se. O planejamento de cada passo em sua presença, escondeu-se em
algum quarto escuro nessa mansão que chamamos de mente. Apagão. De repente, não
havia concentração ou segurança. Somente o cheiro de seu perfume que
misturava-se com o aroma de cigarro em sua camiseta.
Ah,
aquela noite de domingo em que decidira dominar meu cotidiano. Havia acabado de
chegar da missa com a minha mãe e o que predominava era a sensação de leveza.
Depois daquilo, agonia constante. Sua intelectualidade, ou pelo menos tentativa
dela, assustava-me. Meu coração, já machucado há um tempo, abrigava uma poesia
que dizia que nada daria certo novamente. Apaixonar-me por poetas não era algo do
qual me orgulhava. O último havia bagunçado não só a casa, mas o departamento responsável
pela esperança, em meu espírito. Não é tarefa fácil recuperar-se de um domador
de versos. De certa forma, todavia, seu ar blasé causava a impressão de que
dessa vez não haveria desalento.
Na
primeira vez que nossas mãos se tocaram, um choque percorreu meu corpo,
abençoando-o com um calafrio. Tenho consciência de que o efeito para você não
fora o mesmo. Meu excesso de estímulos, porém, mexeu com sua indiferença. O
nervosismo acumulado, causado pela dor de um verdadeiro amor passageiro, fez
com que minhas respostas tropeçassem e atravessassem ruas sem olhar para os
lados. Algumas vezes, não havia nem mesmo dissoluções da minha parte, apenas
risos forçados contraindo incessantemente as bochechas ardendo em vergonha. Não
importava nossa diferença de idade ser um impedimento. Assumi
a postura de vestir minha própria essência: a de menina, a de garota, de moça, após
tanto tempo segurando o fôlego no ensaio de ser mulher.
A
garrafa térmica esvazia-se e acaba por deixar-me só na noite de quarta-feira.
Completamente sozinha seria exagero, a epifania de poetisa ainda transbordava
os poros sentimentais. Não havia pavor algum do esquecimento. Quantas vezes já fora
esquecida e quantas vezes já não esqueci por completo? Tempos de faxina, querendo
ou não, são necessários até mesmo nos cômodos mais organizados. A poeira da
qual tratamos me alergia, inebria e lacera. Por vezes, a maior das doenças é
causada justamente por aquilo que parecia tão corriqueiro. Cartas apaixonadas e
serenatas sob a varanda apertada não me faltariam nunca, meu anjo. Sabe melhor
do que eu como funcionam bem as táticas do desajeitamento feminino. Seus olhos
brilharam como a luz da estrela cadente que me fez desejar-te, quando entre
construções velhas e julgamentos ultrapassados assistiram nosso beijo. Que você me procuraria, nunca houve nem mesmo
sombra de dúvida. Acontece que, para que exista pelo menos um vestígio do que
pode ser sombra nas paredes da meditação, é necessário um mínimo lampejo de
luz. E no nosso caso, a iluminação poderia ser chamada de medo.
Não
me entenda mal. Seu carinho era irrecusável. Seu silêncio, mortífero. Gostava
demasiadamente de seus fios grossos e pretos e dos cachos que se formavam perto
da região occipital. Cortavam-me
a carne as horas sem uma resposta convincente derramada pela sua boca vermelha.
Sua gargalhada irônica alvoraçava minha aposta no aperfeiçoamento da maturação.
E o cigarro entre os dentes? Aquela falsa preocupação sobre se me importaria
ou não? A fumaça depositada no canto direito de meu rosto e os avisos sobre os
danos à saúde? Alucinavam-me. O jeito
como tentava desesperadamente esconder a palpitação acelerada em seu coração,
que escapava por aquela veia do pescoço, era o conto de fadas sonhado por
tanto tempo. Acontece que eu não era mais princesa. Acontece que você não era
ele.
Compreendo,
é insanidade. Birra de criança teimosa que sabe o que quer. Bisbilhotice a fim de conhecer o desconhecido
almejado durante tanto tempo. Exatos dez meses desde que visitara o beco perigosíssimo
do amor. Perdi-me nos olhos esmeralda dele e voltei sem coração. Confesso que,
no momento, procurei por todos os lugares. Bolsos, sonhos, viagens,
responsabilidades, poesias, bonecas de criança. Não estava em lugar algum. Mas
com ele, em seu altar inalcançável, simplesmente por ser um deus com a cor do
pecado. Meu eu-lírico sem nome assinado.
Orgulho
disso é algo que jamais terei. Por quantos homens já não passei, por uma
investida no que poderia remediar –ou talvez curar por completo- a falta do
homem de sorriso diamante? É frustrante e desgastante a tentativa de
recuperar-me. Ou pelo menos transformar em resultado de carbono um abraço que
nunca existiu. Os beijos não me acordam como deveriam, o que é extremamente
cômico: desde pequenos, não fomos ensinados que somente um beijo seria capaz de
quebrar maldições? E se, por um acaso, a maldição for o amor inatingível que
muitas vezes decidiu ser derrotado?
Talvez
devessem trancar-me em uma torre alta, longe de emoções e reviravoltas sobre aquilo
que, erroneamente, ilude ser a última chance. Nunca é. Costumam dizer que homens
nunca são verdadeiros com a face à mostra. Dê a eles uma máscara e talvez
falem a verdade. No entanto, feras continuam voltando, fantasiadas. A única marca que deixam em minha vida, porém, é a de cicatrizes ou
arranhões do que passou tão perto do sentimento de realeza. Cubro-me com sua
manta cor de vinho deixada em meu armário e volto a pensar: seria a vida essa
grande prisão cercada de dragões raivosos por terem um dia se enganado, ou a
verdadeira condenação é estarmos todos fadados a acreditar piamente em
histórias inventadas para tornar a vida suportável?
O
sono amortece-me, deixando um último pensamento às horas bem-vindas da manhã.
Perdão ao dançarino, aos poetas de carne e osso e aos de corpo e alma, ao
matemático e até ao mesmo viajante desbravador. Dediquei-me até o último passo de
cada, dado em direções opostas, a alinhar-me nesse falso amor. Sentimentos de
araque, todavia, não me têm utilidade alguma. Puxo a toalha da mesa e quebro
copos em atitudes incalculáveis. Digo “nunca” ao que poderia ter sido
confortável. Uma pena que o confortável jamais me aliviou as tensões nos ombros
ou olheiras causadas por cachoeiras de lágrimas salgadas. Sou leoa, comodidade
é questão de dor. Aconchego é como corte de navalha no peito do ser amado. Amo
o impossível e almejado.
Sou
poetisa.
Uma
pena
que aquilo
que me
mova
seja a
loucura.
Uma
lástima,
bebida
desperdiçada,
que vocês
não sejam
ele.
Rimas
bastam-me.
A
arte nunca me levara a lugar algum,
talvez
vazio, no fim do túnel
e escuro
no fim do poço.
A
maldição
da princesa
sem dom
para amar,
é coroar-se
rainha de si mesma:
matar
tudo aquilo
de que possa
gostar.
Isadora Egler